Praia? Que praia?

Por Mariana Blanc

Quem chega ao Instituto, dificilmente deixa de notar a Praia. Idealizada como uma intervenção artística pelo professor Jorge Freund*, a Praia mudou o pátio principal, gerou grandes polêmicas e se mantém em constante transformação. Com a palavra, o artista.

Como surgiu esta idéia e qual a sua intenção? Afinal como tudo começou?
Bem, tudo começou com a língua negra... Ali estava surgindo o começo da idéia, digamos assim, por meio de uma impressão estética, mas não ainda uma proposição clara e objetiva. Explicando melhor: o deflagrar do processo criativo foi a existência (que ironia!) de um vazamento de esgotos a céu aberto que fluía e assim fluiu durante uma semana ou mais pelo portão principal de entrada do IACS calçada abaixo, uma língua negra. Junto com outras características mais cativantes – ponto de encontro e reunião de pessoas, muitos jovens, comportamentos extrovertidos, centro de irradiação de novidades, etc – compunham o cenário característico de cenário-praia.

E como seria esse cenário?
Era um cenário de praia urbana, que continha elementos signos de referência do lugar praia, espaço cênico ideal de prazer, valor estabelecido na sociedade contemporânea brasileira e mundial, como a evocação de um tempo no passado (ou no futuro?) onde tudo era, (ou será?) mais perfeito e imaculado, um pensamento-sentimento transformador que propusesse a construção de uma instalação mista, síntese de penetrável e paisagismo, uma intervenção para mudar a face do IACS.





Face que, a essa altura, já não era tão bonita assim...
O contraste entre o cheio de vida-belo e o feio-decrépito, na realidade acentua ainda mais as nuances de beleza e feiúra do quadro, provocando a fagulha do contraste, do estranhamento, e isso é um recurso utilizado pelo artista para provocar a percepção e estimular as indagações. Foi exatamente este contraste que repercutiu nas minhas retinas... e dali passou ao plano da idéia. O contraste entre a possibilidade e a negação da possibilidade, a proximidade do rompimento da inércia: a vida querendo brotar, crescer, e as restrições do meio, dos limites do entorno. E pra completar, nestes últimos anos, o calendário de aulas das universidades públicas sofreu constantes alterações por conta dos sucessivos movimentos grevistas de docentes e funcionários, que acabaram por transformar em rotineiras as aulas no período tradicionalmente reservado às férias escolares, ou seja, durante o verão. Como conseqüência os trajes tornaram-se cada vez mais confortáveis e ou diminutos, um processo de desnudamento encarado como natural por conta do calor. Configurava-se também a perspectiva de mais um verão em aulas, o que em tese manteria as pessoas por mais tempo longe da praia, usual "lugar" do verão.

A não ser...
A não ser é claro que se transformasse aquele espaço em lugar praia! Aquilo já era a própria praia! Cheio de jovens, movimento, troca de informações, novidades, gente bonita cheia de vida e imagine, tem até língua negra! Um não-lugar que possuía todas características para ser o lugar! Além disso, também contou a aparência e as condições do prédio na lateral do pátio e parte integrante das dependências do IACS, que estava já decrépito e relegado ao abandono, sem que houvesse uma ação concreta para recuperá-lo. Marc Augé afirma que “um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar”, referindo-se aos espaços de passagem, sem identidade. Pra completar: havia a disparidade de o espaço ter sido planejado e projetado para ser útil à coletividade (supostamente).

Como você conseguiu criar a resposta para tantas questões?
A resposta estética começava a surgir na reação do artista, de alma sensível. Reação criativa, uma instalação, um “quadro vivo” que, partindo de qualidades "negativas" do lugar, evocaria a inquietude e o questionamento dos quais a arte é portadora, e que trabalhasse em cima dos aspectos mais paradisíacos, de signos já estabelecidos, evocando momento áureo, auge, de estabelecimento do lugar praia como essencial no imaginário coletivo do prazer.

Mas o espírito provocador fica bastante claro também. Foi intencional?
A princípio, fui movido pelo espírito de protesto e de indignação sim, mas num segundo momento, numa evolução da proposta de intervenção, movido pela vontade e sonho de vencer as dificuldades. Foi uma provocação, uma intervenção no espaço, a inserção de uma calota praieira. A abertura de um vão para o "mergulho", para o encontro. Busquei uma ação que mostrasse o sonho, descortinasse o delírio sim, mas como possibilidade de descobertas, criando uma perspectiva, um horizonte, possibilitando "profundidades" em contraposição à parede cega e inexpressiva.





O que você esperava dessa contraposição?
Um cenário que além de evocativo, fosse espaço de estar. Espaço-convergência para troca de conhecimento das várias especialidades profissionais em formação ali e efetivamente cumprindo um papel de lugar de encontro e intercâmbio de experiências, informações, onde, sobretudo, resida o aprendizado e o prazer. Um lugar onde o sonho pudesse se manter acordado, vivo enquanto espaço evocação, proposição, uma perspectiva lúdica.

Qual foi o ponto de partida que definitivamente marcou o início da construção?
Lembro bem do diálogo travado com o Professor Luiz Edmundo de Castro, revestido do humor carioca característico, fazendo referência ao clima inclemente de verão que fazia na ocasião, e ao fato de que tínhamos que o suportar trabalhando, quando tradicionalmente seria época de férias, ou seja, temporada de praia e lazer: ”- O jeito é trazer a praia para cá, fazer uma praia aqui! Alguns ingredientes nós já temos, só está faltando a areia, basta encher de areia de praia o pátio... é só conseguir areia de praia!”“- Fala com o Professor Jefferson Martins lá da Secretaria do Meio Ambiente. É meu amigo, nosso colega, professor da Universidade. Aqui está o telefone dele.”

Quais eram as características do projeto?
O ponto de partida básico era a concretização da proposta sem dispêndio algum de finanças, ou mostrando-se impossível (o que logo se configurou, e foi levado em conta como sendo a cota do artista) com o menor dispêndio possível. O formato para o projeto, mais apropriado dentro da estrutura universitária, foi o de projeto de extensão, a seguir aprovado em toda as instâncias do Instituto. O fato de a proposta ter a chancela do Instituto de Arte, ou seja, da UFF, foi decisivo para abertura de portas e obtenção dos apoios, particularmente o da Prefeitura de Niterói. A partir daí o projeto seguiu os caminhos necessários para merecer apoio das instâncias superiores, tanto da direção do IACS como do Centro de Estudos Gerais, das Pró-Reitorias de Extensão, Graduação e Planejamento.

Agora nos conte um pouco de como foi esse processo da construção, a hora da “mão na massa”...
Conseguimos a areia, o ponto de partida, e era necessário definir a forma de seu volume e sua abrangência, embora um esquema visual da concepção como um todo já tivesse sido esboçado. Só que um descompasso de tempo para agilização do recebimento da areia branca de praia fez com que recebêssemos uma primeira carga de areia com pequeno teor de barro, o que não a caracterizava como areia de praia. Por sorte, um outro setor de areia clara iria ser movimentado em breve pela prefeitura e poderíamos receber nova carga. Então destinamos a primeira carga de areia como base, como primeira camada sobre o piso de concreto do pátio. Houve polêmica e discussões por causa das “dunas” de areia cor-de-barro: afinal, era praia, ou deserto?




E toda a parte de concretagem?
Recorremos mais uma vez à Prefeitura Municipal de Niterói e sua fábrica de pré-moldados de meio-fio. A cessão e transporte das peças também foram rapidamente conseguidos.

A essa altura, já estava instaurada a discórdia...
Discutia-se a intervenção sob vários aspectos, falava-se das condições do IACS, falava-se da deterioração do prédio na entrada do Instituto. A polêmica movimentava o IACS.

E que transformação o projeto inicial sofreu em seu processo?
Muitas. Tudo precisava ser ajustado de acordo com aquilo que recebíamos. Por exemplo, no derramamento da areia barrenta, percebemos que haveria quantidade suficiente para cobrir uma outra laje de concreto, a da tampa da cisterna do Instituto, situada no início do terreno do pátio, ao lado do espaço previsto para a praia, virando um alongamento da instalação. Neste momento, a idéia da vegetação rasteira (gramado) intermediando a passagem da calçada para a areia já estava definida, aproveitando então para estender a cobertura vegetal também cobrir aquela laje com grama, amenizando a paisagem. Durante o processo de construção foi necessário recorrer várias vezes ao improviso e ao voluntarismo, o que propiciou engajamento de cidadãos desempregados das redondezas e até de alunos. Essa interação também fazia parte da proposta – a participação da comunidade não acadêmica, o que ampliava o escopo de experiências. Com o pátio já tomado pela areia, marcamos a posição das mudas e a dimensão das covas e iniciamos o plantio. Depois veio o gramado, ao longo da borda exterior da areia, para harmonizar o todo, reforçando a linha da calçada e estabelecendo um espaço intermediário. A seguir, a fiação foi estendida ao longo e junto da calçada por baixo do tapete de grama com rabichos que saíam para cada árvore, aonde na sua base, junto aos troncos foram cravados os spots coloridos apropriados para jardins. E a última etapa de acabamento foi a pintura da calçada em preto e branco com o desenho do trecho da curva de Moebius e a feitura do painel.
E que tipo de reações você pôde perceber?
O teor das opiniões demonstrava a expectativa e curiosidade. Criaram um tópico de discussão dentro do Orkut, chamado "A praia do IACS", onde a troca de opiniões prós e contra espelhavam a repercussão da obra, abrangendo a partir daí a discussão de questões universitárias e educativas. Esse foi um dos sintomas de que a primeira das intenções já dava mostra de resultados: justamente quebrar o marasmo e inércia através da intervenção espacial e motivar uma movimentação, tanto no plano estudantil quanto no plano docente. Provocar respostas, idéias, deflagrar a polêmica. E ouviu-se de tudo. As reações condenatórias eram muito mais explícitas e veementes que as favoráveis, mesmo porque a maioria não conseguia entender o que se passava. Muitos repetiam: “- Não sei o que é, mas sou contra!”. Mas havia os que aplaudiam esse ato de intervir, mudar, transformar. Havia a “brigada sanitária”, que projetava para o futuro problemas higiênicos catastróficos com a propagação de germes pela transformação da areia em local para animais satisfazerem suas necessidades biológicas. Como se o espaço que ocupamos, no qual realizamos uma atividade duradoura, não dependesse de nossos cuidados e zelo. De toda a forma, havia um clima de excitação e curiosidade que considerávamos já como um resultado positivo da ação.

E como se deu a ocupação após o término da obra?
Para a noite da inauguração, estava prevista a realização de um evento, um show musical. O show foi uma produção paralela, que envolveu a participação intensa de estudantes de produção cultural e de comunicação social. Esta participação ofereceu condições para uma prática, parte do aprendizado, de várias técnicas ensinadas nos vários cursos oferecidos pelo Instituto, além de outras de natureza artístico-criativa. Direção de palco, produção sonora, iluminação, produção de efeitos visuais, além da participação como apresentadores-locutores, músicos, repórteres e fotógrafos... O espaço também foi utilizado como cenário para uma filmagem de Nelson Pereira dos Santos e documentário sobre uma cineasta potiguar formada pelo IACS. Foi sede da festa do Festival Universitário de Cinema, serviria de cenário de programa de tv ao vivo, a ser exibido como programação pela TV Universitária, “A Praia da Cultura”, que pretende ser um programa convergência dos esforços didáticos de várias disciplinas e que funcione como um programa de auditório ao vivo. Tudo acontecendo tendo a praia como palco e cenário. Esse programa, passados dois anos, ainda não aconteceu por causa das dificuldades em articular o coletivo e também dos reveses sofridos pelo Instituto como a invasão das dependências e o roubo de equipamentos. Durante o ano de 2006, dando continuidade à proposição de ocupação artística, foi realizada a instalação denominada “Mr. Mutt no Brasil” – uma citação e comemoração do centenário da obra dadaísta “A Fonte”, de Marcel Duchamp, apresentada sob o pseudônimo de Richard Mutt, feita, em parte, porque a idéia de realizar intervenções coletivas em grafitti nas paredes da casa condenada não vingou.

Como você avalia o resultado final?
Foi positiva a experiência do trabalho artístico como objeto e palco de atividade didática para o alunado. Muitas atividades foram realizadas e caminhos percorridos, além do aceno da possibilidade de outros mais. Várias disciplinas ligadas às áreas de jornalismo e produção cultural, imediatamente perceberam o potencial laboratorial e demandaram de seus alunos questões correlatas e assim surgiram reportagens e ocupações oriundas destas propostas. A participação do alunado, de membros da comunidade universitária e do bairro, o amplo espectro das discussões deflagradas, a mobilização em torno da restauração da edificação na entrada do Instituto e do próprio Instituto sendo reavivada, tudo isso é exemplo da grande capacidade de alcance e repercussão que uma intervenção deste tipo pode ter.

O resultado final, em relação à execução, te agradou? Vendo a experiência com o olhar de agora, há alguma coisa que você gostaria de ter feito de outra forma?
Agradou, mas claro que poderia ter sido diferente, ou mesmo melhor. Foi o que deu pra fazer. Na verdade algumas coisas do desenvolvimento não chegaram a ser feitas, como encher de água o mar-buraco e realizar performances no espaço. Mas o desenvolvimento natural sempre surpreende e alegra, até o crescer e frutificar das plantas...

Alguém não pode deixar de ser citado?
Não quero ser injusto, todos foram fundamentais, do aluno (já graduado) da Produção Cultural Marcelo Lopes, a prefeitura de Niterói em seus vários departamentos, os Professores Luiz Sergio de Oliveira e Antonio Serra (respectivamente, então chefe do depto de Arte e diretor do IACS), Firmino Marsico (pró-reitor de extensão)... Foi raro! Tudo e todos ajudaram, até os que foram contra!

Qual da sua visão do Instituto nesse aniversário?
Ando um pouco distante, mas acho que continua caótico. No plano administrativo-gerencial, evidencia a inabilidade, a falta de disposição e preparo para tal, assim inexistência de verba e exigüidade de funcionários não apenas dispostos a trabalhar, mas competentes, que saibam realizar as tarefas básicas de suas atribuições.

E os planos para o futuro?
O futuro como sempre promete, não sei se cumpre: a transferência para novas instalações no Gragoatá, melhores condições de trabalho... O resto é incógnito.


____________________
*O professor Jorge Freund, mestre em Ciência da Arte, é professor adjunto da UFF desde 1990. Anteriormente, foi professor do departamento de Arquitetura da UFPB. No nosso IACS, já ministrou os cursos de Teoria da Percepção, Desenho Livre, Cenografia e Criação Videográfica.

Nenhum comentário: